quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Disponível para amar

Passou-lhe a mão pelos cabelos. Olhou-a nos olhos, fundo... e beijou-os. Depois a face, o queixo, demorando-se na boca. O toque ainda quente na pele quase o fez estremecer, quase um ardor, quase a queimar, mas não de culpa. Talvez já de saudade. A pele, outrora rosada, começava a marmorizar e os olhos já não disparavam luz para onde quer que olhassem. O fio de sangue que lhe escorria do peito finalmente parou, e ele olhou-a com ternura. Era sempre assim... começava por amá-las, mas esta era sempre a única forma de acabar com a prisão que sentia, que o maniatava, sufocava, soterrava. 
Olhou à volta, temendo que o explosão do tiro tivesse atraído algum mirone, mas não foi o caso. Continuavam sozinhos, ele agora mais sozinho. Finalmente. 
Subiu a manga da camisa e, com a faca que normalmente trazia no tornozelo, atravessou com um traço os quatro traços verticais que a cicatriz deixava ver. Era a quinta, mas tinha-a amado como a primeira. Agora tinha acabado, e estava disponível... disponível para amar novamente!

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

primeiro em conversas familiares


Uma deformação genética que ninguém conhecia deixou na altura do seu nascimento a comunidade científica perplexa. Ao contrário do esperado, o que teria sido um grande alívio, a mutação não lhe deformou o corpo, mas deixou-o para sempre com a última palavra.

Como numa pessoa especial, com algum tipo de super-poder, a doença só começou a manifestar-se na adolescência. Recortava então dos livros a última palavra, um pequeno rectângulo de papel que tomava como se fosse uma hóstia, colocando-a gentilmente na ponta da língua e depositando-a com muito cuidado no céu da boca, não lhe mexendo mais e deixando-a colar-se ao corpo, para, naturalmente, ser absorvida.

Talvez estas coisas não passassem de tontarias da juventude. O verdadeiro problema surgiu nos anos seguintes. Primeiro em conversas familiares, depois, socialmente, com os amigos, e por fim no seu local de trabalho, quando se tornou evidente que já não podia mais ficar sem a última palavra. Naturalmente não fazia de propósito, embora não pudesse evitá-lo, apesar dos grandes constrangimentos que isto lhe trazia.

Com o tempo a condição agravou-se, e, apesar de ser ainda um homem relativamente novo, um homem com bom aspecto, poder-se-à dizer, agora, com toda a certeza, que morrerá sozinho. Não pode deixar de sentir-se um manequim plastificado, com rugas plastificadas, observado com curiosidade. Como é evidente só um louco chegaria a falar-lhe, pois, já se sabe, fica sempre com a última palavra. E claro, as pessoas acham isso aborrecido.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

A porta

De qualquer forma não se importou. O andar podia ser o errado,  mas o propósito não o era. Isso era uma certeza! E da certeza nasceu a coragem de bater à porta. Primeiro um toque timido, depois mais afoito, quase magoando os nós dos dedos (como se fosse possível dar nós com os dedos... a não ser que fossem suficientemente compridos).

Noc Noc, devolveu a madeira já velha da porta. Nada! Silêncio, e mais nada! Poucos instantes bastaram para que ao barulho do arrastamento da tranca (das várias trancas?) se seguisse o quase-guinchar das dobradiças da porta a abrir. Nheeeeeeeeec!

No escuro conseguiu ver uma forma vaga, sombria, que inquiriu:

- É esse o meu manto?


ou visto qualquer uma delas à janela


Quando o manto da noite caiu à rua, alguém, por sua conta e risco, pegou nele e subiu ao 2º andar do antigo prédio nº 24 da Calçada de Santana. Certamente sem saber nos trabalhos em que iria meter-se, entrou e subiu ansiosamente os velhos degraus da escada, e uma vez cá em cima, com o manto devidamente dobrado e pendurado no braço esquerdo, ajeitou rapidamente o colarinho da camisa e tocou com a outra mão à campainha da porta da morte.

 A que ficou a dever-se tamanha estupidez, e como foi possível não perceber que a noite morava no andar de baixo, é difícil de responder. Era do conhecimento geral que tanto a noite como a morte habitavam aquele velho prédio de dois andares, embora até este momento, pelo que se sabe, nunca ninguém lá tenha entrado ou visto sequer qualquer uma delas à janela, mas, pela natural ordem das coisas, que até nestas questões se consegue observar, seria evidente que a morte reclamara o último andar. Teria, porventura, confundido o manto da noite com o manto da morte?

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Granada


Uma granada com defeito, em vez de rebentar em si própria e espalhar (num raio exactamente delimitado) metralha em fusão, deixando mortos ou lentos alguns inimigos, ao contrário de libertar terreno para outros povos que aí vêm, quando tocou no chão, fez explodir a Terra. Anos depois, quando o vento galáctico dissipou toda a poeira, podia ver-se, em vez de um planeta, uma granada a flutuar no espaço.

A questão que se coloca é a seguinte: estará a granada desactiva?

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Circuito - versão com menos nus, e mais negra, é verdade, mas revista e melhorada


Mais um ano, mais uma volta completa, mais uma passagem pela casa da partida. Percorrem-se os meses como num jogo de tabuleiro, como se fossem casas individuais, casas vazias, nuas, blocos à espera de vida e de tempo e de cor. Pode ser um circuito redondo, ou com ângulos, mas é sempre à volta. Um percurso de 12 meses pelas redondezas revela quarteirões de cores próprias, como é natural nas estações do ano. O tempo passa. Mais uma volta, mais uma passagem pela casa da partida.

O que mudou nesta versão?

Em 1º lugar, desenhei o calendário do ano da forma que sempre o imaginei - não com estas cores, claro, mas com cores, só que na altura não tinha canetas de cor à mão -, desenhei-o como o vejo na minha cabeça, vou dar um exemplo: dia 22 de Julho, o dia dos meus anos, se quiser localizá-lo mentalmente no espaço, imagino-o no canto inferior direito do desenho, talvez na 1ª ou 2ª casa na vertical, curiosamente no quarteirão que corresponde à primavera, embora eu faça anos no verão, é engraçado que só agora reparei nisto...

Em 2º lugar desviei o focus da liberdade e do nú (não existe agora uma única referência à liberdade, e existe uma única à nudez), e recoloquei-o no tempo. E falar da liberdade e da nudez, é, por simples associação de ideias, diferente de falar, também por simples associação de ideias, do tempo.

liberdade/nudez/alegria
tempo/nostalgia  

Daqui resulta o tom, ligeiramente mais escuro. Uma perspectiva é mais inocente (mais infantil, como lhe chamou o Bruno), como é bom correr nu pela natureza, que felicidade é estar vivo!; a outra é mais racional e ao mesmo tempo mais abstracta: como vejo o meu tempo no calendário?

Esta explicação foi útil?

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Circuito


Um circuito, um circuito livre de todas as correntes, de todos os julgamentos, onde podemos correr livres e todos nús, para sempre, sem nunca nos cansarmos; livres e todos nús durante a primavera, num prado florido, pelo meio da erva alta e fresca; livres e todos nús durante o verão, na savana silênciosa, a ouvirmos o som dos calcanhares a baterem no chão da terra; livres e todos nús no outono, talvez na praia, na areia molhada, ao fim da tarde, de facto, não há nada definido para esta estação; livres e todos nús no inverno, através das neves montanhosas de distantes locais inóspitos. Um circuito com várias cores. Como uma volta num jogo de tabuleiro.